Depois de muita paulada, namoradas
amalucadas e pouco comprometidas, a gente fica mesmo meio arredio às vezes. Sem perceber, meio do contra. E foi com este
espírito que tudo começou.
Numa pequena galeria de apenas 7
lojas perto da igreja Santo Antônio, havia alugado duas lojinhas. A loja três e
a loja 7. No meio das duas, ficava a loja da minha mãe, decoradora de
primeiríssima linha. Todas as lojas ficavam à direita da entrada e do lado
esquerdo uma jardineira intercalava espaços que serviam de bancos nos horários
de folga.
Um dia, sem muita diferença dos
demais, passando em frente à loja cinco, provavelmente saindo da 3 e indo para
a 7, o que acontecia sempre, ou ao contrário, vi a nova estagiária da minha mãe
descendo as escadas. Foi difícil não notar.
Um cabelo esvoaçante e puxado
para o ruivo, roupas meio extravagantes e um tamanco faziam parte da
indumentária da garota. Parei no ar, com as pernas ainda andando mas a cabeça
parada quase um metro para trás e quase fui ao chão. A manobra passou
desapercebida por ela, que somente olhou de relance, mas não pela minha mãe. O
olhar foi de reprovação e eu não disse uma palavra quando ela veio em casa,
durante o almoço, dizer que não admitia de jeito nenhum que eu fizesse nada com
a menina. Entre blás,blás e blás de mãe, só fixei – “Itabira” e “boa família”.
Os “pelamordeDeus” nem contei. Meu pai não riu e minhas irmãs nem notaram. Nos
falamos nos dias seguintes e mantive certa distância.
Como nada dura para sempre e a
carne é fraca ( ou seria outro o ditado? ), nos encontramos à noite, numa casa
noturna com música na Savassi. Tudo sem combinar. Eu com um grupo de amigos e
ela com as colegas de faculdade. Depois de cumprimentar, não entendi bem como,
ela sentou ao meu lado e conversamos distraidamente até o lugar fechar. Um
colega ainda tentou demovê-la a ir embora pois era tarde e ele iria junto, mas
ela agradeceu e quase me obrigou a levá-la. Como se já não quisesse. Ao chegar
em frente ao seu apartamento demos um beijo que pareceu durar uma eternidade,
mas foram apenas segundos. Pronto, era namoro.
Com o início do namoro caiu a
máscara de jogo duplo da minha mãe. Enquanto que para mim falava para não mexer
com a estagiária e apenas ressaltava suas qualidades, para ela me mostrava como
um ótimo partido e também falava somente das qualidades. Talvez a curiosidade
tenha nos unido de início. Mas como tudo, as coisas mudam com o tempo.
Depois de algum tempo, e talvez
sem muito saber, uma reação natural do homem veio à tona. A vontade de fugir de
compromissos mais sérios. E era isto mesmo que o namoro havia se tornado. Algo
sério. Como em outras ocasiões, um diabinho no ombro direito falava o errado,
mas para mim parecia o certo.
Nesse tempo, como em vários
outros, o Stadt Javer era uma segunda casa, com conhecidos, amigos, amigas e
muito chopp. Nesta época, ela cursava Arquitetura no Izabela Hendrix e minha
única obrigação era buscá-la na sexta em frente à portaria da Rua da Bahia, às
22:00h, na saída. Depois poderíamos fazer nossos programas juntos ou voltar ao
Stadt Javer para mais chopp´s. Acontece que o horário era difícil, pois havia
começado no chopp por volta das 18:00h e o caneco estava cheio. Como deixava
para o último minuto o pedido da conta e ainda contava com uma saideira para
pegar o carro, fui sistematicamente atrasando o horário de chegada.
Um dia, depois de várias vezes
atrasado, mas sempre perdoado, o diabinho foi mais forte. Desta vez cheguei com
duas horas de atraso, faltando pouco para meia-noite. No caminho me xingava,
mas autocrítica é imissível com chopp. Chegando na porta, havia somente uma luz
de poste lá do alto iluminando um pedaço entre as árvores, onde, sozinha, ela
esperava. Parei o carro e esperei um xingamento daqueles que já havia ouvido
antes, e até um fim de relacionamento. Pensei até na minha mãe e seus sermões,
quando, de olhos fechados e meio acuado, recebi um beijo no rosto e ouvi um –
Vamos? .
Não teve briga, não teve término,
não teve discussão e nem choro. Subimos, ela tomou banho, se aprontou e saímos
para um barzinho perto da casa dela. Lá, com a maior calma, ela me disse que o
problema de marcar as 22:00h e chegar atrasado era na realidade a insegurança,
já que todas as outras pessoas da escola iam embora mais cedo e o porteiro
fechava a portaria às 23:00h. Então, das 23:00h até minha chegada ela ficava
sozinha e tinha medo de assalto. Me explicou que muitas pessoas saiam juntas
para ter mais segurança e passavam na porta da
sua casa, o que seria mais racional. Foi só ao final que falou sobre os
horários limite. Cinco minutos depois das 22:00h iria embora para casa, onde me
esperaria até as 23:00h. Neste horário, já com as amigas em algum lugar,
sairia. Sem brigas. Ouvi calado, mas esqueci depressa.
Na sexta-feira seguinte, o mesmo
ritual. Do trabalho direto para o Stadt Javer, próximo das 18:00h. Muito chopp
e o velho diabinho. Só quase meia-noite consegui sair e ir buscá-la. Não estava
muito preocupado, mas devia. Chegando, não a encontrei em frente à escola.
Estava ventando e a luz do poste encobria um lado escuro, que oscilava com o
balançar de uma árvore. Ainda passei devagar e parei, olhando para todos os
lados, meio espantado. Não tive dúvidas, estaria em casa. Como era muito perto,
chegar foi rápido, coisa de poucos quarteirões. Saí do carro, ajeitei a roupa e
bati o interfone. O interfone tocou sem resposta por cinco tensas tentativas,
até a conclusão mais óbvia chegar, havia saído com as colegas de sala.
Arrasado, e sem mais um traço do
chopp que há pouco me entorpecia, saí a sua procura nos bares próximos. Depois
de passar por vários, encontrei ela no Assacabrasa da Rua Rio de Janeiro, numa
mesa cheia de mulheres, com uma conversa regada a cerveja e risadas mil. De
longe me viu estacionando o carro e levantou para ir ao meu encontro. Não disse
uma única palavra. Me deu vários beijos, me apresentou para as amigas, pediu
uma cadeira e um copo e fez de uma noite que poderia ter sido terrível uma
noite memorável.
Numa época sem celulares, pode-se
imaginar minha angústia. Pode-se também perguntar se falhei de novo. Respondo:
Falhei muitas vezes e ainda falho. De preferência por motivos novos. Se casei?
É claro que sim, como poderia deixar escapar o amor da minha vida? Uma mulher
inteligente, que enganou o diabinho e me deixou na lona.
Fim.
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